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" O FLECHA DE PRATA"

Nascido e criado em ambiente ferroviário, por virtude da profissão do meu pai, é natural que guarde muitas e gratas recordações de eventos de que fui testemunha e vivi.
Morava em Silves, Algarve: quem consultar o mapa ferroviário de Portugal logo verifica que se situa no ramal de Lagos na linha de tranvias que liga Vila Real de Santo António a Lagos, sendo o ponto de separacão a estacão de Tunes.
Corria o ano de 1952 (ou1953), ainda vivíamos no rescaldo da 2a Guerra Mundial.
Silves, como hoje era cidade e sede do concelho. As pricipais actividades de então, além do comércio local eram a agricultura e indústria corticeira. A vida corria a um passo muito lento.
A Estacão do C. Ferro fica a 2 quilómetros da cidade. Aos Domingos era ponto de visita de muita gente que vinhao num passeio até a Estacão para ver os comboios passar o que era o fascínio de muita gente, ainda estavamos no tempo da locomotiva a vapor que haveriam de perdurar ainda uns anos bons.

A atracção principal da gente que residia na vizinhança da Estacão, era o chamado "comboio de Lisboa". Esta era a composicão que trazia os passageiros com destino as estacões do ramal de Lagos vindos de Lisboa no comboio rápido do Barreiro até V. R. de Santo António tendo efectuado transbordo em Tunes.
Naquele tempo toda agente por aquelas paragens se conheciam mutuamente. O comboio chegava a Silves cerca das 15.00h, se viesse à tabela, claro...

Para ver quem chegava, as pessoas ficavam pela sala de espera da estacão ou então espreitavam pelo gradeamento, já que o acesso à gare implicava a compra do bilhete de gare cujo custo era de 1 escudo, o preço de um jornal nesse tempo.

Chegava este e aquele; era o militar que vinha de licença para casa, eram famílias com crianças, os pais e avós, era o emigrante de volta ou de visita ao torrão natal, outros que vinham ver a noivas etc...,etc... cumprimentos e apertos de mão para os amigos e abraços e beijos para os familiares acompanhados por algumas lágrimas de alegria.

Havia um ou outro que ninguém conhecia... estes eram vistos com uma certa reserva para não dizer desconfiança.

Quem é, quem nao é? Será da família de fulano, aquele que está em Lisboa?

Quando esses estranhos entravam numa das 3 tabernas locais para pedir qualquer esclarecimento sobre o local ou caminho a seguir, o taberneiro era de imediato interrogado sobre as perguntas que o estranho tinha feito, para assim encontrarem uma pista. Era assim!

Por esses anos, (há portanto 50 anos!) houve um acontecimento que muito alegrou Silves e arredores:

Um clube de futebol lisboeta da 1a divisão nacional vinha jogar em Silves. Não me lembro se foi para um jogo amigável com o clube local, o Silves Futebol Club, então na 3a divisão ou se foi com um clube de igual categoria.

No estádio do Silves ainda lá deve existir uma placa a lembrar o acontecimento.
O clube Lisboeta seria transportado pelo famoso comboio "Flecha de Prata" do Barreiro (depois da travessia do Tejo) até Silves. O "Flecha de Prata" ainda era novidade para a maioria dos Portugueses.

Era um Domingo de manhã, estava-se no tempo das amendoeiras em flor, sol radiante: cedo comecaram a chegar as pessoas e, lá pelo meio dia havia um movimento na estacão que so tinha sido visto em dias de feira.

Vieram de carro de tracção animal, a pé, de bicicleta, na camionete da carreira (assim se chamava), etc...

As tabernas locais nesse dia fizeram bom negócio.

À hora aprazada, o disco aberto, o agulheiro no seu posto, o chefe da estação na gare com a sua bandeira encarnada, toda bem enrolada, a locomotiva já tinha apitado lá ao longe, os olhos fixaram-se na direcção da aproximação. A espectativa estava estampada nos rostos dos presentes: lá vem ele! Era o "Flecha de Prata" composto por 5 ou 6 carruagens puxado por uma potente locomotiva a vapor a dar entrada na linha nº 2 (linha nº1 tinha que estar desimpedida para o trafego normal) transportando a equipa de futebol e os seus adeptos, tendo parado ao sinal do chefe com a bandeira desfraldada.

Vivas e palmas para os jogadores cujas caras eram conhecidas através das páginas desportivas dos jornais de notícias e desportivos. A miudagem da minha geração já os conhecia através daquelas estampas que se compravam nas mercearias e tabernas juntamente com um rebucado, para serem coladas num álbum que quando completado habilitavam o colecionador a um sorteio de uma bola. A televisão ainda estava a 5 ou 6 anos de fazer a sua aparição.

Por ordem superior foram autorizados grupos a percorrer o interior do "Flecha de Prata"; com os bancos estofados as janelas grandes, o vagão restaurante nao esquecendo os WC's, etc...

Para a maioria dos presentes o "Flecha de Prata" foi a grande atração. Ficando à frente do futebol.

R. Martins