<História
Cacilhas. Terminal da Linhas do Sul - Um projecto adiado

© José Luís Covita * / ocomboio.net

“O terminus das linhas do Sul e Sueste devia ter sido desde a origem em Cacilhas, em frente a Lisboa, onde a travessia fluvial é curta e fácil a qualquer hora”
Caminhos de Ferro Portugueses- Subsídios para a sua história.

Em finais de 1876, a Imprensa Nacional editava um curioso livrinho, intitulado: Caminho de Ferro do Sul e Sueste – “Discussão sobre o local para fixação do terminus d’esta linha” em que compilava todos os artigos publicados no Jornal do Comércio, desde 6 de Agosto de 1875 até 1 de Novembro do ano seguinte, baseado essencialmente na polémica entre os engenheiros Miguel Pais e Manuel Raimundo Valadas.

Miguel Pais argumentava que o local era completamente desabrigado dos ventos principais, pequeno e de pouco fundo, não podendo estabelecer-se docas, cais , pontes, guindastes e todos os demais acessórios necessários a uma pronta carga e descarga de navios e barcos. Valadas , por outro lado, preferia Cacilhas, visto estar mais perto de Lisboa e dos navios de comércio, e para os passageiros o incómodo da viagem fluvial seria muito menor. As polémicas sobre o assunto iriam prolongar-se por mais de seis décadas

No entanto, datam de 1864 os primeiros estudos, na altura realizados por engenheiros ingleses, de fazer chegar o caminho de ferro a Cacilhas. Em 1890 era chefe de exploração o engenheiro Vargo, que obteve do Ministro da altura o aval para estudar aquele troço. Oito anos depois uma Comissão Técnica encarregue de preparar o plano da rede complementar ao sul do Tejo, composta pelos engenheiros : Tavares Trigueiros, Pedro Ignácio Lopes, Xavier Cordeiro. Teixeira Júdice e J.Fernando de Sousa foi unânime em considerar Cacilhas a melhor opção. A apelidada lei de 14 de Julho de 1899 incluía o troço de Cacilhas como de primordial importância, tendo sido criado um fundo especial. Da elaboração do projecto definitivo foi encarregue o engenheiro Costa Serrão, que desde logo o caracterizou com uma novidade: a preocupação em aproveitar a energia mecânica das marés nos esteiros dos rios Judeu e Coina, para produzir energia eléctrica.

Entramos no século XX e em meados de 1901 é finalmente adjudicado à firma “Ferry e Companhia” a construção do prolongamento entre Barreiro e Cacilhas por 24.990$000 réis.

O projecto em 1903, segundo o jornal O Puritano de Almada

O entroncamento com a linha do Sul e Sueste faz-se entre a estação do Lavradio e a estação terminus do Barreiro, sendo dividido em três lanços. A nova estação do Barreiro fica ao Km, 0,7866 do prolongamento, sendo de 4ª classe. Até à margem direita do esteiro de Coina, o novo traçado segue em trincheira, indo depois em aterro, em terrenos dominados pelas marés, vindo a passar um pouco a norte dos edifícios da Azinheira, passando os rios Coina e Seixal em dique com ponte móvel, e seguindo perto da margem do Tejo, até alcançar o extremo sul das barreiras do Alfeite, onde entra um pouco para logo se aproximar do sopé d’ellas na linha do praiamar.

Seguindo esta linha inflete-se em seguida para a direita, recta que segue através da baía da Cova da Piedade até ao paralelo da Mutella, atingindo aqui o local onde começam a ser encontrados fundos convenientes para a nova estação terminus das linhas do sul e sueste, inclinando-se então no traçado para a esquerda para se manter contiguo a estes fundos, indo até à Margueira, onde é estabelecido cais com pequenos fundos para vapores de passageiros e pequenos barcos de mercadorias, havendo também um cais acostável para grandes navios. A gare será coberta e terá um projector eléctrico para iluminar a travessia do Tejo, que fica assim muito limitada.


A estação que nunca foi construída. Cacilhas em 1908

Abrange uma vasta estação terminal de grande velocidade, com o terrapleno dentado formando molhes com vários desembarcadouros distintos para partidas e chegadas, para passageiros e recovagens, separada da estação de pequena velocidade por um canal, que valoriza o terrapleno. Os vapores atracam e largam directamente de proa, sem perdas de tempo em manobras, e encontram abrigo conveniente, mesmo antes de construído o molhe de pequena velocidade. Disporá de cinco plataformas, separadas por feixes de linhas, que asseguram a distinção de serviços, ligando-se por passagens inferiores. O edifício da estação colocado paralelamente à linha, tem proporções modestas, visto ser apenas destinado ao movimento local de Cacilhas, constituindo o resto da gare um vasto desembarcadouro com linhas, plataformas e cobertura geral em corpos que podem ser sucessivamente executados.

No Verão de 1911 está finalmente construído o primeiro quilómetro de linha. Anos de mais projectos e indecisões se vão seguir. Repetem-se sondagens geológicas e terraplanagens à beira do rio, altera-se vezes sem conta o traçado, o tipo de pontes, de material a empregar, de cais, desdobram-se os municípios em contas e mais contas, em influências. Nos princípios dos anos vinte as pontes sobre os rios Coina e Judeu estão prontas. Sucedem-se os ensaios, as vistorias. No domingo 29 de Julho de 1929, às 11h30 largou da estação de Sul e Sueste o vapor “Europa”, transportando o chefe do Governo e a sua comitiva. No Barreiro tomariam lugar no comboio inaugural da linha de Cacilhas, que após uma breve paragem a meio da ponte, entrou na estação do Seixal debaixo dos acordes do hino nacional. A Cacilhas nunca haveria de chegar. Os projectos, as adjudicações, a formação de novas companhias, os discursos, as palestras, as polémicas iriam ainda durar mais vinte anos. A estação do Barreiro, terminus das linhas do Sul, essa continua, talvez desafiando a frase quase com 100 anos de J.Fernando de Sousa : “ O actual terminus das linhas do sul é o mais completo e notável compêndio de patologia ferroviária de que tenho conhecimento”.

* © José Luís Covita, Investigador em Transportes

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