Viajantes> Daniel Conde
Online desde 22 de Outubro de 2004.
Os Caminhos da Nogueira

Qual a realidade que se espelha nas dobras das vertentes Nordeste a Sudeste da Serra da Nogueira ? Aldeias perdidas do concelho de Bragança ? Também, mas não só. O abandono é aqui um espectro fantasmagórico que no Inverno voga pelo ar com as farripas de nevoeiro, e no Verão arde calcinado no silêncio das fragas. Bragança está a dois passos, Macedo de Cavaleiros e Vinhais a três, Mirandela a quatro. Porém, a sensação de se estar perdido, quase como se se estivesse a caminho do Shangri – Lá, é algo que se entranha por todos os poros, ao se embriagar nesta visão abrupta das rudes vertentes, e nos espaços que de quando a quando se abrem para a imensidão espectral do Nordeste, de Trás-os-Montes. E nada disto se torna mais brutalmente real do que quando, por entre tufos de silvas, por detrás de um pinhal, ou ao lado de uma estrada esburacada, nos deparamos com a siderada visão do que resta da antiga linha férrea.

Então, subitamente, somos confrontados por mil pensamentos contraditórios, que tentamos condensar numa frasezinha ou mesmo numa palavra só, ficando horrorizados por uma súbita inércia do cérebro... Momentos depois uma frase nos assalta: “Que miséria...”. É pouco; é pouco para uma realidade tão incompreendida. Instintivamente, traçamos indefinidamente uma nova rota, para seguir por estes restos mortais outrora profanados. Não há medo associado a este acto irreflectido. Apenas sabemos que para lá de uma curva já quase imperceptível não nos vai aparecer perigo algum. Por entre os passos, os pés sentem esporadicamente uma brita abandonada, um resto podre de uma travessa, e sempre, sempre, os sulcos quase constantes destas. Há desníveis, vencidos por longas rampas que se calcorreiam cheios de esperança, pois tantas subidas há, como descidas. A paisagem vai fugindo, mas nunca destoando do tom granítico e terroso da serra. Na mente começam a surgir como do nada imagens de um possível passado, de um lânguido olhar lançado aos vales, de um sacolejar de toda uma carruagem nos intervalos dos carris, de um paciente olhar para o bilhete de cartão, rosa ou azul, de um fresco e despertante (ou adormecente, se de noite) cheiro a gasóleo (ou mesmo carvão!)e a óleo queimado. Uma breve conversa com o revisor, e ao lado discute-se uma partilha de terras, e os parentes numa França e numa Alemanha, longe demais para se imaginar dali, da Nogueira. Mais uma curva e Oh!... Um brevíssimo silêncio antecede um marco por todos conhecido, mesmo ali, pouco depois de Rebordãos. A nossa alma estremece de repente, e temos um pensamento estúpido: “Olha cair daqui abaixo!”.

Depois de tanta terra pisada, surge como um eco gregoriano do passado uma gigantesca teia de ferro, tecido e esquecido num abrupto vale da serra. Agarramo-nos ao corrimão; os carris desapareceram, as travessas já poucas são, e o estreito corredor pedonal parece feito de plástico. Chamamos a nós a nossa coragem, e atravessamos. Como um raio, já no meio da travessia, surge um calmo pensamento, de uma pupila a dilatar-se perante este espectáculo, bebido por uma janela trepidante, esquecido por segundos de se estar no mundo dos Homens... E passamos. Vêem-nos as lágrimas aos olhos e aquela tal frasezinha assalta-nos de novo a consciência: ”Que miséria...”. A passagem fechada e muda aperta-nos na nossa existência, e enumeramos causas para acabar com este sofrimento.

O comboio é do povo. Quem no-lo tirou é um criminoso. Quem permite que a nossa memória seja assim difamada e jogada na lama, é indigno do grandioso nome de Trasmontano. É impossível esquecer totalmente esta irreal realidade, mas, aquele que a tente esquecer de vez, é de entre todos os outros, o pior dos criminosos. Ele deve voltar a trilhar os caminhos da Nogueira, deve voltar a fazer parte desta paisagem, chegar ao sol levante, e partir ao sol poente. E num desafio à Lei dos Homens, todos os dias da sua vida, fazer o seu eco correr bem alto, para que toda a província o ouça.

Viramos os olhos lá para o sopé distante da serra. As antenas marcam a sua presença dominante, e aos seus pés a capela de Nossa Senhora da Serra dormita beatificamente, lutando ferozmente contra as intempéries. Uma paz invade-nos. Uma estúpida poesia nos embala, fazendo-nos pensar que lá do alto da serra a santa vela todas as vertentes, abençoando os casarios e estendendo a sua mão, para curar esta ferida nas veias da Nogueira... Não. A mãe divina pouco pode contra todo este silêncio, porque a Lei terrena vai contra a de Deus...

Rimo-nos. Se tudo isto fosse verdade... É tarde, voltamos para trás. Na plataforma vazia de Rebordãos quase vemos uma velhinha recolher os seus sacos de plástico rosa, de medicamentos, enquanto o comboio vem contra nós, desaparecendo, rumando pelo colossal caminho que ainda o separa do Tua. Uma certeza enfim invade-nos, quando deixamos o troço da antiga via férrea e voltamos para o nosso lar: “Que miséria!...”.

Lá do alto, no sopé da serra , Nossa Senhora lança a sua benção aos caminhos da Nogueira, antes de subir ao céu, por um qualquer caminho que já todos nós sonhamos.


Daniel Conde, dez de Janeiro de 2003.