Chegavam a trabalhar 14 horas seguidas. Andavam com a casa às costas e passavam dias e dias sem ver a família. Faziam dos comboios o seu lar e andavam felizes. Antigos ferroviários recordam com saudade tempos e histórias que os carris da memória jamais apagarão. A tristeza surge de mansinho quando falam em estações degradadas, em linhas que fecharam, no abandono do caminho de ferro. O comboio é o melhor transporte do mundo, mas o amor ferroviário, dizem, já não existe.
Havia duas hipóteses. Ou a farda da polícia ou da CP. Optou por vestir a segunda. Na terra, a indústria era escassa e, por isso, era preciso fazer pela vida. Manuel Guimarães decidiu então "meter para a CP". Pediam o diploma da 4ª classe, tinha de ser analisado por uma junta médica e ainda tirar uma "chapa aos pulmões". E lá conseguiu entrar. Começou como servente, foi guarda-freios e acabou por ser revisor. Era o "pica", conta, ao mesmo tempo que explica com as duas mãos como era usado o instrumento que picava os bilhetes. "Era outra coisa, mais saudável", diz ao comparar com as outras funções que ocupou.
Tem 68 anos, está reformado e mora em Nine, Vila Nova de Famalicão. Chegou a trabalhar 12 horas por dia. "Estava três dias por semana fora de casa. Mal via os meus filhos", recorda. De 1956 até ao 25 de Abril de 1974 ganhava 700 escudos por mês e ainda tinha de fazer os descontos. Por uma deslocação, ganhava 25 tostões. "Tinha de cozinhar para mim que o dinheiro não chegava. Era para o tachito e mais nada". "O ferroviário foi sempre mal pago antes do 25 de Abril", desabafa.
Foram tempos difíceis, mas em que nunca pensou abandonar a CP. "Não fiz nenhuma fortuna. Fiz uma casita e estou a viver nela". "A gente fazia muitos sacrifícios, mas trabalhava como se fosse para mim, como se fosse dono da CP". Na altura em que foi para os caminhos de ferro, lembra, "quando alguém se portava mal diziam: Pocinho, Tua ou Rua, que eram as estações mais duras".
Manuel Guimarães também ensinou aos mais novos a arte de ser revisor. Dizia como é que se deviam dirigir ao passageiro e mais do que ensinar, realça, era preciso "ver como trabalhava para amanhã fazer igual". Mas, curiosamente, não dizia aos seus pupilos para mostrarem sempre os dentes. "Pedia-se para mostrar o documento e não se dizia sempre bom-dia". O que era necessário, explica, "era vencer o passageiro com a educação".
Chegou a sonhar com comboios centenas de vezes, antes de acordar bem cedo para o trabalho. Era a freima. Ainda hoje considera o melhor do mundo o meio de transporte que lhe deu a ganhar o pão. E com orgulho confessa que "os ferroviários são uma família unida e têm amigos por todo o lado".
Mas os tempos mudaram. Para pior, parece: "O caminho de ferro é hoje um emprego de empregado de escritório", afirma. "O mal da CP é os engenheiros serem accionistas das camionagens. Estão a estragar a CP em benefício da camionagem". No meu tempo, trabalhava-se mas dava", conclui.
Continua...
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