O embarque para a distância.
É, todavia, prematuro falar em chegadas. Afinal de contas, acabámos de ouvir o apito do chefe de estação autorizando a partida. A linha range. O comboio mostra-se indiferente às suas lamúrias e põe-se em movimento. Toca-me uma carruagem couchette. O compartimento é o número sete e embora o espaço seja reduzido para uma só pessoa conto seis beliches, três de cada lado, presos à parede por umas cintas que inspiram pouca confiança.
Estão ainda os atletas franceses a braços com a arrumação da bagagem e já o comboio abranda a marcha, preparando-se para entrar na Gare do Oriente. Não há dúvida que esta estação é uma infra-estrutura impressionante, um motivo de orgulho para a arquitectura contemporânea portuguesa. A geométrica teia de ferro branco coberta de vidro, que se interpõe entre o passageiro e o Tejo, não impede que o brilho das águas do rio atinja as janelas do "Sud", ameaçando cegar com tanta luminosidade. Ainda assim não tenho coragem para fechar as cortinas. O cais está cheio de gente que sobe apressadamente para o comboio depois de infindáveis despedidas aos que ficam. O ruído que estava do lado de fora passa para dentro, aumentando substancialmente. Dão-se as boas-vindas aos novos ocupantes que vão passando, um a um, pelas portas dos compartimentos. O desfile em passo lento deve-se à largura acanhada do corredor que, pelas suas características, apenas permite a circulação de passageiros e respectivas malas num só sentido. Como ainda ninguém se lembrou de colocar sinais de trânsito dentro dos comboios, o engarrafamento é inevitável. Chocam uns com os outros e desculpam-se em todas as línguas. Frequentemente, entram uns dois ou três para o compartimento de forma a dar passagem ou, então, porque acham que finalmente encontraram os seus lugares. Olham para os bilhetes; olham para o número do compartimento; olham para nós e de novo para os bilhetes. Depois vão, voltam e tornam a ir. Quinze ou vinte minutos mais tarde, a calma regressa ao interior do trem. Calha-me um casal de suíços, que não está para grandes conversas.
A próxima paragem será o Entroncamento. A partir daí poderemos deleitar-nos com a paisagem de verdes fugidios, ora mais claros, ora mais escuros, consoante passemos por planícies banhadas pela luz morna do final da tarde ou rompemos por entre túneis de arvoredos mais sombrios. Ao chegar à Pampilhosa (a do Botão) iremos certamente encontrar gente do norte do país. É a estação mais próxima para quem vem daquelas bandas e pretende viajar no Sud Expresso. Por isso, é frequente que apanhem um comboio regional até aqui e esperem por este, que os levará numa longa viagem além-fronteiras.
Ao parar em Mangualde já escureceu por completo. Mesmo sendo Verão não é fácil vislumbrar o mundo exterior. Breves silhuetas de árvores, algum casario e nada mais. Para dificultar, acenderam as luzes na carruagem-restaurante. Agora, pela janela, vejo apenas o reflexo das mesas postas para o jantar, todas elas enfeitadas com uma jarra de flores artificiais em constante equilíbrio acrobático. Os empregados servem vinho tinto, do Alentejo, (outra acrobacia) enquanto os passageiros vão acalmando o estômago com as entradas. O restaurante está cheio. Já não há mesas para todos. Acabo por partilhar a minha com um jovem casal francês. Porém, o preço da refeição (18 euros) não agrada e acaba por desistir, dando lugar a mais dois jovens, desta vez norte-americanos. Perguntam-me de onde sou. À minha resposta, atiram: «So, you speak spanish!» Não é a primeira vez que os estrangeiros confundem Portugal com uma província espanhola. E, a bem da verdade, não fora a Restauração de 1640 e ainda hoje teríamos como chefe de Estado o rei Juan Carlos I. O que verdadeiramente espanta na afirmação convicta dos americanos é que mesmo durante os sessenta anos de domínio espanhol, na dinastia Filipina, o português continuou a ser a língua oficial. Mas a Espanha marcou e continua a marcar em Portugal. Parece que o tampão castelhano que nos separa do resto do continente europeu, aos olhos dos outros, acabou por nos engolir. De qualquer modo, nem me dão tempo para explicações. Pelo mesmo motivo do casal francês, levantam-se e saem apressadamente.
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